Escravo de Camargo Barros
Como todos os outros negros tirados á força da terra-mãe África, os antepassados de João deixaram identidade e memória nos porões de algum dos infames navios negreiros. Era só João. Como era escravo da família Camargo Barros, em cujas terras trabalhava, deles herdou o sobrenome. Virou João de Camargo Barros. O detalhe infamante: "de" do sobrenome pode ser entendido também como indicativo de propriedade. Era João de Camargo Barros, como o moinho de Camargo Barros, o campo de Camargo Barros...
Escravo não tem direito a memória, assim como não existe versão de quem perdeu a batalha. Os perdedores simplesmente perdem, não lhes é dado contar histórias. O que se sabe da ascendência de João?
Histórias e versões que se perdem no tempo. Resgatar a trajetória de qualquer ser humano no planeta é trabalho complicado, quanto mais a história de Nhô João, assunto que mexe com valores extremamente íntimos das pessoas, principalmente aquelas que o conheceram ainda em vida na Terra. Diversos autores, sorocabanos ou não, ocuparam - se de escrever essa rica e complexa biografia. Creio que todos tenham tido uma dificuldade comum:não raro, um mesmo episódio da vida de Nhô João aparece com duas ou mais versões, como costuma acontecer quando, lanterna na mão, retornamos ao passado em busca de uma história.Impreciso, envolto numa densa nuvem de incertezas, o passado se nos apresenta multifacetado, não raro confuso; não sendo improvável que algum dos autores - este inclusive - tenha derrapado em alguma das múltiplas armadilhas que se sucedem na pesquisa.
Não que se atribua necessariamente dolo ou má-fé ao entrevistado ou fonte imprecisos. que assuntos dessa envergadura trazem consiga uma fonte carga de emoção e, nessas condições, é difícil manter a isenção e a precisão no fornecimento da informação solicitada. Portanto, é preciso garimpar, selecionar, classificar, armazenar, atribuir diferentes pesos e níveis de importância, e só a partir daí procurar esboçar o desenho lógico do texto.
Não se fie o leitor: todos estes cuidados garantem, no máximo, um erro diferente. Mas talvez haja algum acerto também. isto posto, vamos em frente. Entre outros que se dedicaram ao assunto temos Antônio Francisco Gaspar - autor do livro Cruzes e Capelinhas -, Fernando Antônio Lomardo e Sônia Castro - autores do livro O Solitário da Água Vermelha -, Paulo Tortello - membro do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Sorocaba e da Academia Sorocaba de Letras, autor de fundamentada pesquisa sobre o tema, intitulada João de Camargo, o Milagreiro de Sorocaba -, Florestan Fernandes, Genésio Machado - autor do livro João de Camargo e seus Milagres - e A.C. Guerra da Cunha - que apresentou versões extremamente interessantes em artigo publicado no Jornal Diário de Sorocaba, em 1981-, além do Jornalista Alcir Guedes - que publicou uma série de quatro reportagens no extinto semanário A Cidade, em 1984. Podemos citar ainda Afolfo Frioli, Rogich Vieira e o professor Benedito Cleto. Há, certamente, outros autores que não foram alcançados por este trabalho.
O que sabemos do passado: nos idos de 1858, provavelmente em junho ou julho, nasceu um bebê do sexo masculino, a quem foi dado o nome de João, na fazenda do Cocais, de propriedade de Luís de Camargo Barros. Não há referências ao pai. Era filho da escrava Francisca, mais conhecida como Nhá Chica e, segundo o sociólogo Florestan Fernandes, "dada a práticas de curandeirismo". Já Fernando Antônio Lomardo e Sônia Castro mencionam a escrava como grande conhecedora de ervas e iniciadora de Nhô João no universo das curas espirituais. Voltando aos fatos: há também duas versões, sobre o destino inicial de Nhô João. No dizer de Fernando Antônio Lomardo e Sônia Castro: "negrinho dado para a família Camargo Barros com seis anos de idade e passou a ser pajem da recém-nascida da família, Emília Camargo Barros, de quem foi dedicado criado até seu casamento". No entanto, A.C. Guerra da Cunha, mencionado na pesquisa de Paulo Tortello, informa que Nhô João foi doado á família Camargo Barros com um mês de vida, já sendo sua propriedade quando do nascimento da menina.
Como não se sabe o dia exato, seu nascimento passou a ser comemorado no dia de seu batismo, que ocorreu na Igreja de Sarapuí em 5 de Julho de 1858, em cerimônia conduzida pelo Frei Jerônimo. Segundo Paulo Tortello, sua apresentadora foi Gertrudes de Barros, seu padrinho foi José de Camargo Barros e sua madrinha a Padroeira de Sarapuí, Nossa Senhora das Dores.
Já se mencionou acima que a "parte África", se é que a podemos chamar assim, de Nhô João foi herdada de sua mãe, a escrava Nhá Chica, que teria lhe transmitido seu repertório de valores, tradições e costumes. Por sua vez, a iniciação de Nhô João nos valores católicos foi feita dentro da casa da família Camargo Barros. A dupla Lomardo/Castro atribui essa função a Luís de Camargo Barros, dono de Nhô João. Já Tortello indica sua sinhá, D. Ana Tereza de Camargo, católica devota e praticante, como a iniciadora na religião. De qualquer maneira, as pistas da formação católica de Nhô João apontam coerentemente para dentro da casa dos Camargo Barros.
Depois do casamento de Emília ( A.C. Guerra da Cunha informa que seu nome completo era Emília Almeida de Camargo Barros ), Nhô João foi trabalhar na roça até chegar a Sorocaba, aos 22 anos de idade, no ano de 1880. Afirma - se que ele trabalhou, entre outros, com o médico Ignácio Pereira da Rocha, o engenheiro alemão identificado apenas como Dr. Cosme e Elias Lopes Monteiro. Tortello menciona ainda Deodoro Gonçalves e Waldomiro Baddini.
Depois da Abolição e da República, ficou livre. Sabe - se que esteve em Itararé no ano de 1893, servindo como voluntário no Batalhão Paulista que combateu a revolução de Gumercindo Saraiva. Após o retorno, consta que Nhô João foi trabalhar como camarada na propriedade de Justiniano Marçal de Souza.